CIDADE DO VATICANO, segunda-feira, 17 de
outubro de 2011 (ZENIT.org) – Apresentamos, a seguir, a carta
apostólica publicada hoje em forma de Motu próprio, intitulada “Porta
fidei”, do Papa Bento XVI, com a qual convoca o Ano da
Fé.
***
CARTA
APOSTÓLICA - SOB FORMA DE MOTU
PROPRIO
PORTA
FIDEI
DO SUMO
PONTÍFICE
BENTO
XVI
COM A QUAL SE
PROCLAMA O ANO DA FÉ
1. A PORTA DA FÉ (cf. Act 14,
27), que introduz na vida de comunhão com Deus e permite a entrada na sua
Igreja, está sempre aberta para nós. É possível cruzar este limiar, quando a
Palavra de Deus é anunciada e o coração se deixa plasmar pela graça que
transforma. Atravessar esta porta implica embrenhar-se num caminho que dura a
vida inteira. Este caminho tem início no Baptismo (cf. Rm 6, 4), pelo
qual podemos dirigir-nos a Deus com o nome de Pai, e está concluído com a
passagem através da morte para a vida eterna, fruto da ressurreição do Senhor
Jesus, que, com o dom do Espírito Santo, quis fazer participantes da sua própria
glória quantos crêem n’Ele (cf. Jo 17, 22). Professar a fé na Trindade
– Pai, Filho e Espírito Santo – equivale a crer num só Deus que é Amor (cf.
1 Jo 4, 8): o Pai, que na plenitude dos tempos enviou seu Filho para a
nossa salvação; Jesus Cristo, que redimiu o mundo no mistério da sua morte e
ressurreição; o Espírito Santo, que guia a Igreja através dos séculos enquanto
aguarda o regresso glorioso do Senhor.
2. Desde o princípio do meu ministério
como Sucessor de Pedro, lembrei a necessidade de redescobrir o caminho da fé
para fazer brilhar, com evidência sempre maior, a alegria e o renovado
entusiasmo do encontro com Cristo. Durante a homilia da Santa Missa no início do
pontificado, disse: «A Igreja no seu conjunto, e os Pastores nela, como Cristo
devem pôr-se a caminho para conduzir os homens fora do deserto, para lugares da
vida, da amizade com o Filho de Deus, para Aquele que dá a vida, a vida em
plenitude»[1]. Sucede não poucas vezes que os cristãos sintam maior preocupação
com as consequências sociais, culturais e políticas da fé do que com a própria
fé, considerando esta como um pressuposto óbvio da sua vida diária. Ora um tal
pressuposto não só deixou de existir, mas frequentemente acaba até
negado.[2]Enquanto, no passado, era possível reconhecer um tecido cultural
unitário, amplamente compartilhado no seu apelo aos conteúdos da fé e aos
valores por ela inspirados, hoje parece que já não é assim em grandes sectores
da sociedade devido a uma profunda crise de fé que atingiu muitas
pessoas.
3. Não podemos aceitar que o sal se
torne insípido e a luz fique escondida (cf. Mt 5, 13-16). Também o
homem contemporâneo pode sentir de novo a necessidade de ir como a samaritana ao
poço, para ouvir Jesus que convida a crer n’Ele e a beber na sua fonte, donde
jorra água viva (cf. Jo 4, 14). Devemos readquirir o gosto de nos
alimentarmos da Palavra de Deus, transmitida fielmente pela Igreja, e do Pão da
vida, oferecidos como sustento de quantos são seus discípulos (cf. Jo
6, 51). De facto, em nossos dias ressoa ainda, com a mesma força, este
ensinamento de Jesus: «Trabalhai, não pelo alimento que desaparece, mas pelo
alimento que perdura e dá a vida eterna» (Jo 6, 27). E a questão, então
posta por aqueles que O escutavam, é a mesma que colocamos nós também hoje: «Que
havemos nós de fazer para realizar as obras de Deus?» (Jo 6, 28).
Conhecemos a resposta de Jesus: «A obra de Deus é esta: crer n’Aquele que Ele
enviou» (Jo 6, 29). Por isso, crer em Jesus Cristo é o caminho para se
poder chegar definitivamente à salvação.
4. À luz de tudo isto, decidi proclamar
um Ano da Fé. Este terá início a 11 de Outubro de 2012, no
cinquentenário da abertura do Concílio Vaticano II, e terminará na Solenidade de
Nosso Senhor Jesus Cristo Rei do Universo, a 24 de Novembro de 2013. Na referida
data de 11 de Outubro de 2012, completar-se-ão também vinte anos da publicação
do Catecismo da Igreja Católica, texto
promulgado pelo meu Predecessor, o Beato Papa João Paulo II,[3] com o objectivo
de ilustrar a todos os fiéis a força e a beleza da fé. Esta obra, verdadeiro
fruto do Concílio Vaticano II, foi desejada pelo Sínodo Extraordinário dos
Bispos de 1985 como instrumento ao serviço da catequese[4] e foi realizado com a
colaboração de todo o episcopado da Igreja Católica. E uma Assembleia Geral do
Sínodo dos Bispos foi convocada por mim, precisamente para o mês de Outubro de
2012, tendo por tema A nova evangelização para a transmissão da fé
cristã. Será uma ocasião propícia para introduzir o complexo eclesial
inteiro num tempo de particular reflexão e redescoberta da fé. Não é a primeira
vez que a Igreja é chamada a celebrar um Ano da Fé. O meu venerado
Predecessor, o Servo de Deus Paulo VI, proclamou um ano semelhante, em 1967,
para comemorar o martírio dos apóstolos Pedro e Paulo no décimo nono centenário
do seu supremo testemunho. Idealizou-o como um momento solene, para que
houvesse, em toda a Igreja, «uma autêntica e sincera profissão da mesma fé»;
quis ainda que esta fosse confirmada de maneira «individual e colectiva, livre e
consciente, interior e exterior, humilde e franca».[5] Pensava que a Igreja
poderia assim retomar «exacta consciência da sua fé para a reavivar, purificar,
confirmar, confessar».[6] As grandes convulsões, que se verificaram naquele Ano,
tornaram ainda mais evidente a necessidade duma tal celebração. Esta terminou
com a Profissão de Fé do Povo de Deus,[7] para
atestar como os conteúdos essenciais, que há séculos constituem o património de
todos os crentes, necessitam de ser confirmados, compreendidos e aprofundados de
maneira sempre nova para se dar testemunho coerente deles em condições
históricas diversas das do passado.
5. Sob alguns aspectos, o meu venerado
Predecessor viu este Ano como uma «consequência e exigência pós-conciliar»[8],
bem ciente das graves dificuldades daquele tempo sobretudo no que se referia à
profissão da verdadeira fé e da sua recta interpretação. Pareceu-me que fazer
coincidir o início do Ano da Fé com o cinquentenário da abertura do
Concílio Vaticano II poderia ser uma ocasião propícia para compreender que os
textos deixados em herança pelos Padres Conciliares, segundo as palavras do
Beato João Paulo II, «não perdem o seu valor nem a sua beleza. É
necessário fazê-los ler de forma tal que possam ser conhecidos e assimilados
como textos qualificados e normativos do Magistério, no âmbito da Tradição da
Igreja. Sinto hoje ainda mais intensamente o dever de indicar o Concílio como
a grande graça de que beneficiou a Igreja no século XX: nele se
encontra uma bússola segura para nos orientar no caminho do século que
começa».[9] Quero aqui repetir com veemência as palavras que disse a propósito
do Concílio poucos meses depois da minha eleição para Sucessor de Pedro: «Se o
lermos e recebermos guiados por uma justa hermenêutica, o Concílio pode ser e
tornar-se cada vez mais uma grande força para a renovação sempre necessária da
Igreja».[10]
6. A renovação da Igreja realiza-se
também através do testemunho prestado pela vida dos crentes: de facto, os
cristãos são chamados a fazer brilhar, com a sua própria vida no mundo, a
Palavra de verdade que o Senhor Jesus nos deixou. O próprio Concílio, na
Constituição dogmática Lumen gentium, afirma: «Enquanto Cristo
“santo, inocente, imaculado” (Heb 7, 26), não conheceu o pecado (cf.
2 Cor 5, 21), mas veio apenas expiar os pecados do povo (cf.
Heb 2, 17), a Igreja, contendo pecadores no seu próprio seio,
simultaneamente santa e sempre necessitada de purificação, exercita
continuamente a penitência e a renovação. A Igreja “prossegue a sua peregrinação
no meio das perseguições do mundo e das consolações de Deus”, anunciando a cruz
e a morte do Senhor até que Ele venha (cf. 1 Cor 11, 26). Mas é
robustecida pela força do Senhor ressuscitado, de modo a vencer, pela paciência
e pela caridade, as suas aflições e dificuldades tanto internas como externas, e
a revelar, velada mas fielmente, o seu mistério, até que por fim se manifeste em
plena luz».[11]
Nesta perspectiva, o Ano da Fé
é convite para uma autêntica e renovada conversão ao Senhor, único Salvador do
mundo. No mistério da sua morte e ressurreição, Deus revelou plenamente o Amor
que salva e chama os homens à conversão de vida por meio da remissão dos pecados
(cf. Act 5, 31). Para o apóstolo Paulo, este amor introduz o homem numa
vida nova: «Pelo Baptismo fomos sepultados com Ele na morte, para que, tal como
Cristo foi ressuscitado de entre os mortos pela glória do Pai, também nós
caminhemos numa vida nova» (Rm 6, 4). Em virtude da fé, esta vida nova
plasma toda a existência humana segundo a novidade radical da ressurreição. Na
medida da sua livre disponibilidade, os pensamentos e os afectos, a mentalidade
e o comportamento do homem vão sendo pouco a pouco purificados e transformados,
ao longo de um itinerário jamais completamente terminado nesta vida. A «fé, que
actua pelo amor» (Gl 5, 6), torna-se um novo critério de entendimento e
de acção, que muda toda a vida do homem (cf. Rm 12, 2; Cl 3,
9-10; Ef 4, 20-29; 2 Cor 5, 17).
7. «Caritas Christi urget nos –
o amor de Cristo nos impele» (2 Cor 5, 14): é o amor de Cristo que
enche os nossos corações e nos impele a evangelizar. Hoje, como outrora, Ele
envia-nos pelas estradas do mundo para proclamar o seu Evangelho a todos os
povos da terra (cf. Mt 28, 19). Com o seu amor, Jesus Cristo atrai a Si
os homens de cada geração: em todo o tempo, Ele convoca a Igreja confiando-lhe o
anúncio do Evangelho, com um mandato que é sempre novo. Por isso, também hoje é
necessário um empenho eclesial mais convicto a favor duma nova evangelização,
para descobrir de novo a alegria de crer e reencontrar o entusiasmo de comunicar
a fé. Na descoberta diária do seu amor, ganha força e vigor o compromisso
missionário dos crentes, que jamais pode faltar. Com efeito, a fé cresce quando
é vivida como experiência de um amor recebido e é comunicada como experiência de
graça e de alegria. A fé torna-nos fecundos, porque alarga o coração com a
esperança e permite oferecer um testemunho que é capaz de gerar: de facto, abre
o coração e a mente dos ouvintes para acolherem o convite do Senhor a aderir à
sua Palavra a fim de se tornarem seus discípulos. Os crentes – atesta Santo
Agostinho – «fortificam-se acreditando».[12] O Santo Bispo de Hipona tinha boas
razões para falar assim. Como sabemos, a sua vida foi uma busca contínua da
beleza da fé enquanto o seu coração não encontrou descanso em Deus.[13] Os seus
numerosos escritos, onde se explica a importância de crer e a verdade da fé,
permaneceram até aos nossos dias como um património de riqueza incomparável e
consentem ainda que tantas pessoas à procura de Deus encontrem o justo percurso
para chegar à «porta da fé».
Por conseguinte, só acreditando é que a
fé cresce e se revigora; não há outra possibilidade de adquirir certeza sobre a
própria vida, senão abandonar-se progressivamente nas mãos de um amor que se
experimenta cada vez maior porque tem a sua origem em
Deus.
8. Nesta feliz ocorrência, pretendo
convidar os Irmãos Bispos de todo o mundo para que se unam ao Sucessor de Pedro,
no tempo de graça espiritual que o Senhor nos oferece, a fim de comemorar o dom
precioso da fé. Queremos celebrar este Ano de forma digna e fecunda.
Deverá intensificar-se a reflexão sobre a fé, para ajudar todos os crentes em
Cristo a tornarem mais consciente e revigorarem a sua adesão ao Evangelho,
sobretudo num momento de profunda mudança como este que a humanidade está a
viver. Teremos oportunidade de confessar a fé no Senhor Ressuscitado nas nossas
catedrais e nas igrejas do mundo inteiro, nas nossas casas e no meio das nossas
famílias, para que cada um sinta fortemente a exigência de conhecer melhor e de
transmitir às gerações futuras a fé de sempre. Neste Ano, tanto as
comunidades religiosas como as comunidades paroquiais e todas as realidades
eclesiais, antigas e novas, encontrarão forma de fazer publicamente profissão do
Credo.
9. Desejamos que este Ano
suscite, em cada crente, o anseio de confessar a fé plenamente e com
renovada convicção, com confiança e esperança. Será uma ocasião propícia também
para intensificar a celebração da fé na liturgia, particularmente na
Eucaristia, que é «a meta para a qual se encaminha a acção da Igreja e a fonte
de onde promana toda a sua força».[14] Simultaneamente esperamos que o
testemunho de vida dos crentes cresça na sua credibilidade. Descobrir
novamente os conteúdos da fé professada, celebrada, vivida e rezada[15] e
reflectir sobre o próprio acto com que se crê, é um compromisso que cada crente
deve assumir, sobretudo neste Ano.
Não foi sem razão que, nos primeiros
séculos, os cristãos eram obrigados a aprender de memória o Credo. É
que este servia-lhes de oração diária, para não esquecerem o compromisso
assumido com o Baptismo. Recorda-o, com palavras densas de significado, Santo
Agostinho quando afirma numa homilia sobre a redditio symboli (a
entrega do Credo): «O símbolo do santo mistério, que recebestes todos
juntos e que hoje proferistes um a um, reúne as palavras sobre as quais está
edificada com solidez a fé da Igreja, nossa Mãe, apoiada no alicerce seguro que
é Cristo Senhor. E vós recebeste-lo e proferiste-lo, mas deveis tê-lo sempre
presente na mente e no coração, deveis repeti-lo nos vossos leitos, pensar nele
nas praças e não o esquecer durante as refeições; e, mesmo quando o corpo dorme,
o vosso coração continue de vigília por ele».[16]
10. Queria agora delinear um percurso
que ajude a compreender de maneira mais profunda os conteúdos da fé e,
juntamente com eles, também o acto pelo qual decidimos, com plena liberdade,
entregar-nos totalmente a Deus. De facto, existe uma unidade profunda entre o
acto com que se crê e os conteúdos a que damos o nosso assentimento. O apóstolo
Paulo permite entrar dentro desta realidade quando escreve: «Acredita-se com o
coração e, com a boca, faz-se a profissão de fé» (Rm 10, 10). O coração
indica que o primeiro acto, pelo qual se chega à fé, é dom de Deus e acção da
graça que age e transforma a pessoa até ao mais íntimo dela
mesma.
A este respeito é muito eloquente o
exemplo de Lídia. Narra São Lucas que o apóstolo Paulo, encontrando-se em
Filipos, num sábado foi anunciar o Evangelho a algumas mulheres; entre elas,
estava Lídia. «O Senhor abriu-lhe o coração para aderir ao que Paulo dizia»
(Act 16, 14). O sentido contido na expressão é importante. São Lucas
ensina que o conhecimento dos conteúdos que se deve acreditar não é suficiente,
se depois o coração – autêntico sacrário da pessoa – não for aberto pela graça,
que consente ter olhos para ver em profundidade e compreender que o que foi
anunciado é a Palavra de Deus.
Por sua vez, o professar com a boca
indica que a fé implica um testemunho e um compromisso públicos. O cristão não
pode jamais pensar que o crer seja um facto privado. A fé é decidir estar com o
Senhor, para viver com Ele. E este «estar com Ele» introduz na compreensão das
razões pelas quais se acredita. A fé, precisamente porque é um acto da
liberdade, exige também assumir a responsabilidade social daquilo que se
acredita. No dia de Pentecostes, a Igreja manifesta, com toda a clareza, esta
dimensão pública do crer e do anunciar sem temor a própria fé a toda a gente. É
o dom do Espírito Santo que prepara para a missão e fortalece o nosso
testemunho, tornando-o franco e corajoso.
A própria profissão da fé é um acto
simultaneamente pessoal e comunitário. De facto, o primeiro sujeito da fé é a
Igreja. É na fé da comunidade cristã que cada um recebe o Baptismo, sinal eficaz
da entrada no povo dos crentes para obter a salvação. Como atesta o Catecismo da Igreja Católica, «“Eu creio”: é
a fé da Igreja, professada pessoalmente por cada crente, principalmente por
ocasião do Baptismo. “Nós cremos”: é a fé da Igreja, confessada pelos bispos
reunidos em Concílio ou, de modo mais geral, pela assembleia litúrgica dos
crentes. “Eu creio”: é também a Igreja, nossa Mãe, que responde a Deus pela sua
fé e nos ensina a dizer: “Eu creio”, “Nós
cremos”».[17]
Como se pode notar, o conhecimento dos
conteúdos de fé é essencial para se dar o próprio assentimento, isto é,
para aderir plenamente com a inteligência e a vontade a quanto é proposto pela
Igreja. O conhecimento da fé introduz na totalidade do mistério salvífico
revelado por Deus. Por isso, o assentimento prestado implica que, quando se
acredita, se aceita livremente todo o mistério da fé, porque o garante da sua
verdade é o próprio Deus, que Se revela e permite conhecer o seu mistério de
amor.[18]
Por outro lado, não podemos esquecer
que, no nosso contexto cultural, há muitas pessoas que, embora não reconhecendo
em si mesmas o dom da fé, todavia vivem uma busca sincera do sentido último e da
verdade definitiva acerca da sua existência e do mundo. Esta busca é um
verdadeiro «preâmbulo» da fé, porque move as pessoas pela estrada que conduz ao
mistério de Deus. De facto, a própria razão do homem traz inscrita em si mesma a
exigência «daquilo que vale e permanece sempre».[19]Esta exigência constitui um
convite permanente, inscrito indelevelmente no coração humano, para caminhar ao
encontro d’Aquele que não teríamos procurado se Ele mesmo não tivesse já vindo
ao nosso encontro.[20]É precisamente a este encontro que nos convida e abre
plenamente a fé.
11. Para chegar a um conhecimento
sistemático da fé, todos podem encontrar um subsídio precioso e indispensável no
Catecismo da Igreja Católica. Este constitui
um dos frutos mais importantes do Concílio Vaticano II. Na Constituição
apostólica Fidei depositum – não sem razão assinada na
passagem do trigésimo aniversário da abertura do Concílio Vaticano II – o Beato
João Paulo II escrevia: «Este catecismo dará um contributo muito importante à
obra de renovação de toda a vida eclesial (...). Declaro-o norma segura para o
ensino da fé e, por isso, instrumento válido e legítimo ao serviço da comunhão
eclesial».[21]
É precisamente nesta linha que o Ano
da Fé deverá exprimir um esforço generalizado em prol da redescoberta e do
estudo dos conteúdos fundamentais da fé, que têm no Catecismo da Igreja Católica a sua síntese
sistemática e orgânica. Nele, de facto, sobressai a riqueza de doutrina que a
Igreja acolheu, guardou e ofereceu durante os seus dois mil anos de história.
Desde a Sagrada Escritura aos Padres da Igreja, desde os Mestres de teologia aos
Santos que atravessaram os séculos, o Catecismo oferece uma memória
permanente dos inúmeros modos em que a Igreja meditou sobre a fé e progrediu na
doutrina para dar certeza aos crentes na sua vida de
fé.
Na sua própria estrutura, o Catecismo da Igreja Católica apresenta o
desenvolvimento da fé até chegar aos grandes temas da vida diária. Repassando as
páginas, descobre-se que o que ali se apresenta não é uma teoria, mas o encontro
com uma Pessoa que vive na Igreja. Na verdade, a seguir à profissão de fé, vem a
explicação da vida sacramental, na qual Cristo está presente e operante,
continuando a construir a sua Igreja. Sem a liturgia e os sacramentos, a
profissão de fé não seria eficaz, porque faltaria a graça que sustenta o
testemunho dos cristãos. Na mesma linha, a doutrina do Catecismo sobre
a vida moral adquire todo o seu significado, se for colocada em relação com a
fé, a liturgia e a oração.
12. Assim, no Ano em questão, o
Catecismo da Igreja Católica poderá ser um
verdadeiro instrumento de apoio da fé, sobretudo para quantos têm a peito a
formação dos cristãos, tão determinante no nosso contexto cultural. Com tal
finalidade, convidei a Congregação para a Doutrina da Fé a redigir, de comum
acordo com os competentes Organismos da Santa Sé, uma Nota, através da
qual se ofereçam à Igreja e aos crentes algumas indicações para viver, nos
moldes mais eficazes e apropriados, este Ano da Fé ao serviço do crer e
do evangelizar.
De facto, em nossos dias mais do que no
passado, a fé vê-se sujeita a uma série de interrogativos, que provêm duma
diversa mentalidade que, hoje de uma forma particular, reduz o âmbito das
certezas racionais ao das conquistas científicas e tecnológicas. Mas, a Igreja
nunca teve medo de mostrar que não é possível haver qualquer conflito entre fé e
ciência autêntica, porque ambas, embora por caminhos diferentes, tendem para a
verdade.[22]
13. Será decisivo repassar, durante este
Ano, a história da nossa fé, que faz ver o mistério insondável da
santidade entrelaçada com o pecado. Enquanto a primeira põe em evidência a
grande contribuição que homens e mulheres prestaram para o crescimento e o
progresso da comunidade com o testemunho da sua vida, o segundo deve provocar em
todos uma sincera e contínua obra de conversão para experimentar a misericórdia
do Pai, que vem ao encontro de todos.
Ao longo deste tempo, manteremos o olhar
fixo sobre Jesus Cristo, «autor e consumador da fé» (Heb 12, 2): n’Ele
encontra plena realização toda a ânsia e anélito do coração humano. A alegria do
amor, a resposta ao drama da tribulação e do sofrimento, a força do perdão face
à ofensa recebida e a vitória da vida sobre o vazio da morte, tudo isto encontra
plena realização no mistério da sua Encarnação, do seu fazer-Se homem, do
partilhar connosco a fragilidade humana para a transformar com a força da sua
ressurreição. N’Ele, morto e ressuscitado para a nossa salvação, encontram plena
luz os exemplos de fé que marcaram estes dois mil anos da nossa história de
salvação.
Pela fé, Maria acolheu a palavra do Anjo
e acreditou no anúncio de que seria Mãe de Deus na obediência da sua dedicação
(cf. Lc 1, 38). Ao visitar Isabel, elevou o seu cântico de louvor ao
Altíssimo pelas maravilhas que realizava em quantos a Ele se confiavam (cf.
Lc 1, 46-55). Com alegria e trepidação, deu à luz o seu Filho
unigénito, mantendo intacta a sua virgindade (cf. Lc 2, 6-7). Confiando
em José, seu Esposo, levou Jesus para o Egipto a fim de O salvar da perseguição
de Herodes (cf. Mt 2, 13-15). Com a mesma fé, seguiu o Senhor na sua
pregação e permaneceu a seu lado mesmo no Gólgota (cf. Jo 19, 25-27).
Com fé, Maria saboreou os frutos da ressurreição de Jesus e, conservando no
coração a memória de tudo (cf. Lc 2, 19.51), transmitiu-a aos Doze
reunidos com Ela no Cenáculo para receberem o Espírito Santo (cf. Act
1, 14; 2, 1-4).
Pela fé, os Apóstolos deixaram tudo para
seguir o Mestre (cf. Mc 10, 28). Acreditaram nas palavras com que Ele
anunciava o Reino de Deus presente e realizado na sua Pessoa (cf. LcJo
13, 34-35). Pela fé, foram pelo mundo inteiro, obedecendo ao mandato de levar o
Evangelho a toda a criatura (cf. Mc 16, 15) e, sem temor algum,
anunciaram a todos a alegria da ressurreição, de que foram fiéis testemunhas.
11, 20). Viveram em comunhão de vida com Jesus, que os instruía com a sua
doutrina, deixando-lhes uma nova regra de vida pela qual haveriam de ser
reconhecidos como seus discípulos depois da morte d’Ele (cf. (cf. Mc
16, 15) e, sem temor algum, anunciaram a todos a alegria da ressurreição, de que
foram fiéis testemunhas.
Pela fé, os discípulos formaram a
primeira comunidade reunida à volta do ensino dos Apóstolos, na oração, na
celebração da Eucaristia, pondo em comum aquilo que possuíam para acudir às
necessidades dos irmãos (cf. Act 2,
42-47).
Pela fé, os mártires deram a sua vida
para testemunhar a verdade do Evangelho que os transformara, tornando-os capazes
de chegar até ao dom maior do amor com o perdão dos seus próprios
perseguidores.
Pela fé, homens e mulheres consagraram a
sua vida a Cristo, deixando tudo para viver em simplicidade evangélica a
obediência, a pobreza e a castidade, sinais concretos de quem aguarda o Senhor,
que não tarda a vir. Pela fé, muitos cristãos se fizeram promotores de uma acção
em prol da justiça, para tornar palpável a palavra do Senhor, que veio anunciar
a libertação da opressão e um ano de graça para todos (cf. Lc 4,
18-19).
Pela fé, no decurso dos séculos, homens
e mulheres de todas as idades, cujo nome está escrito no Livro da vida (cf.
Ap 7, 9; 13, 8), confessaram a beleza de seguir o Senhor Jesus nos
lugares onde eram chamados a dar testemunho do seu ser cristão: na família, na
profissão, na vida pública, no exercício dos carismas e ministérios a que foram
chamados.
Pela fé, vivemos também nós,
reconhecendo o Senhor Jesus vivo e presente na nossa vida e na
história.
14. O Ano da Fé será uma
ocasião propícia também para intensificar o testemunho da caridade. Recorda São
Paulo: «Agora permanecem estas três coisas: a fé, a esperança e a caridade; mas
a maior de todas é a caridade» (1 Cor 13, 13). Com palavras ainda mais
incisivas – que não cessam de empenhar os cristãos –, afirmava o apóstolo Tiago:
«De que aproveita, irmãos, que alguém diga que tem fé, se não tiver obras de fé?
Acaso essa fé poderá salvá-lo? Se um irmão ou uma irmã estiverem nus e
precisarem de alimento quotidiano, e um de vós lhes disser: “Ide em paz, tratai
de vos aquecer e de matar a fome”, mas não lhes dais o que é necessário ao
corpo, de que lhes aproveitará? Assim também a fé: se ela não tiver obras, está
completamente morta. Mais ainda! Poderá alguém alegar sensatamente: “Tu tens a
fé, e eu tenho as obras; mostra-me então a tua fé sem obras, que eu, pelas
minhas obras, te mostrarei a minha fé”» (Tg 2,
14-18).
A fé sem a caridade não dá fruto, e a
caridade sem a fé seria um sentimento constantemente à mercê da dúvida. Fé e
caridade reclamam-se mutuamente, de tal modo que uma consente à outra realizar o
seu caminho. De facto, não poucos cristãos dedicam amorosamente a sua vida a
quem vive sozinho, marginalizado ou excluído, considerando-o como o primeiro a
quem atender e o mais importante a socorrer, porque é precisamente nele que se
espelha o próprio rosto de Cristo. Em virtude da fé, podemos reconhecer naqueles
que pedem o nosso amor o rosto do Senhor ressuscitado. «Sempre que fizestes isto
a um dos meus irmãos mais pequeninos, a Mim mesmo o fizestes» (Mt 25,
40): estas palavras de Jesus são uma advertência que não se deve esquecer e um
convite perene a devolvermos aquele amor com que Ele cuida de nós. É a fé que
permite reconhecer Cristo, e é o seu próprio amor que impele a socorrê-Lo sempre
que Se faz próximo nosso no caminho da vida. Sustentados pela fé, olhamos com
esperança o nosso serviço no mundo, aguardando «novos céus e uma nova terra,
onde habite a justiça» (2 Ped 3, 13; cf. Ap 21,
1).
15. Já no termo da sua vida, o apóstolo
Paulo pede ao discípulo Timóteo que «procure a fé» (cf. 2 Tm 2, 22) com
a mesma constância de quando era novo (cf. 2 Tm 3, 15). Sintamos este
convite dirigido a cada um de nós, para que ninguém se torne indolente na fé.
Esta é companheira de vida, que permite perceber, com um olhar sempre novo, as
maravilhas que Deus realiza por nós. Solícita a identificar os sinais dos tempos
no hoje da história, a fé obriga cada um de nós a tornar-se sinal vivo da
presença do Ressuscitado no mundo. Aquilo de que o mundo tem hoje particular
necessidade é o testemunho credível de quantos, iluminados na mente e no coração
pela Palavra do Senhor, são capazes de abrir o coração e a mente de muitos
outros ao desejo de Deus e da vida verdadeira, aquela que não tem
fim.
Que «a Palavra do Senhor avance e seja
glorificada» (2 Ts 3, 1)! Possa este Ano da Fé1 Ped 1, 6-9). A
vida dos cristãos conhece a experiência da alegria e a do sofrimento. Quantos
Santos viveram na solidão! Quantos crentes, mesmo em nossos dias, provados pelo
silêncio de Deus, cuja voz consoladora queriam ouvir! As provas da vida, ao
mesmo tempo que permitem compreender o mistério da Cruz e participar nos
sofrimentos de Cristo (cf. Cl 1, 24) , são prelúdio da alegria e da
esperança a que a fé conduz: «Quando sou fraco, então é que sou forte» (2
Cor 12, 10). Com firme certeza, acreditamos que o Senhor Jesus derrotou o
mal e a morte. Com esta confiança segura, confiamo-nos a Ele: Ele, presente no
meio de nós, vence o poder do maligno (cf. Lc 11, 20); e a Igreja,
comunidade visível da sua misericórdia, permanece n’Ele como sinal da
reconciliação definitiva com o Pai. tornar cada vez mais firme a relação com
Cristo Senhor, dado que só n’Ele temos a certeza para olhar o futuro e a
garantia dum amor autêntico e duradouro. As seguintes palavras do apóstolo Pedro
lançam um último jorro de luz sobre a fé: «É por isso que exultais de alegria,
se bem que, por algum tempo, tenhais de andar aflitos por diversas provações;
deste modo, a qualidade genuína da vossa fé – muito mais preciosa do que o ouro
perecível, por certo também provado pelo fogo – será achada digna de louvor, de
glória e de honra, na altura da manifestação de Jesus Cristo. Sem O terdes
visto, vós O amais; sem O ver ainda, credes n’Ele e vos alegrais com uma alegria
indescritível e irradiante, alcançando assim a meta da vossa fé: a salvação das
almas» (1 Ped 1, 6-9). A vida dos cristãos conhece a experiência da
alegria e a do sofrimento. Quantos Santos viveram na solidão! Quantos crentes,
mesmo em nossos dias, provados pelo silêncio de Deus, cuja voz consoladora
queriam ouvir! As provas da vida, ao mesmo tempo que permitem compreender o
mistério da Cruz e participar nos sofrimentos de Cristo (cf. Cl 1, 24)
, são prelúdio da alegria e da esperança a que a fé conduz: «Quando sou fraco,
então é que sou forte» (2 Cor 12, 10). Com firme certeza, acreditamos
que o Senhor Jesus derrotou o mal e a morte. Com esta confiança segura,
confiamo-nos a Ele: Ele, presente no meio de nós, vence o poder do maligno (cf.
Lc 11, 20); e a Igreja, comunidade visível da sua misericórdia,
permanece n’Ele como sinal da reconciliação definitiva com o
Pai.
À Mãe de Deus, proclamada «feliz porque
acreditou» (cf. Lc 1, 45), confiamos este tempo de
graça.
Dado em Roma, junto de São Pedro, no
dia 11 de Outubro do ano 2011, sétimo de Pontificado.
BENEDICTUS PP.
XVI
[1] Homilia no início do ministério petrino do Bispo de
Roma (24 de Abril de 2005): AAS 97 (2005),
710.
[2] Cf. Bento XVI, Homilia da Santa Missa no Terreiro do Paço
(Lisboa – 11 de Maio de 2010): L’Osservatore Romano (ed. port. de
15/V/2010), 3.
[3] Cf. João Paulo II, Const. ap.
Fidei depositum (11 de Outubro de 1992):
AAS 86 (1994), 113-118.
[4] Cf. Relação final do Sínodo
Extraordinário dos Bispos (7 de Dezembro de 1985), II, B, a, 4:
L’Osservatore Romano (ed. port. de 22/XII/1985),
650.
[5] Paulo VI, Exort. ap. Petrum et Paulum Apostolos, no XIX
centenário do martírio dos Apóstolos São Pedro e São Paulo (22 de Fevereiro de
1967): AAS 59 (1967), 196.
[6] Ibid.: o.c.,
198.
[7] Paulo VI, Profissão Solene de
Fé, Homilia durante a Concelebração por ocasião do XIX centenário do martírio
dos Apóstolos São Pedro e São Paulo, no encerramento do «Ano da
Fé» (30 de Junho de 1968): AAS 60 (1968),
433-445.
[8] Paulo VI, Audiência Geral (14 de Junho de 1967):
Insegnamenti, V (1967), 801.
[9] João Paulo II, Carta ap. Novo millennio ineunte (6 de Janeiro de
2001), 57: AAS 93 (2001), 308.
[10] Discurso à Cúria Romana (22 de Dezembro de 2005):
AAS 98 (2006), 52.
[11] Conc. Ecum. Vat. II, Const. dogm.
sobre a Igreja Lumen gentium,
8.
[12] De utilitate credendi, 1,
2.
[13] Cf. Confissões, 1,
1.
[14] Conc. Ecum. Vat. II, Const. sobre a
Sagrada Liturgia Sacrosanctum Concilium,
10.
[15] Cf. João Paulo II, Const. ap.
Fidei depositum (11 de Outubro de 1992):
AAS 86 (1994), 116.
[16] Santo Agostinho,
Sermo 215, 1.
[17] Catecismo da Igreja Católica,
167.
[18] Cf. Conc. Ecum. Vat. I, Const.
dogm. sobre a fé católica Dei Filius, cap. III: DSDei Verbum, 5. 3008-3009; Conc. Ecum. Vat.
II, Const. dogm. sobre a Revelação divina
[19] Bento XVI, Discurso no
«Collège des Bernardins» (Paris, 12 de Setembro de 2008): AAS 100 (2008), 722.
[20] Cf. Santo Agostinho,
Confissões, 13, 1.
[21] Const. ap. Fidei depositum (11 de Outubro de 1992):
AAS 86 (1994), 115 e 117.
[22] Cf. João Paulo II, Carta enc.
Fides et ratio (14 de Setembro de 1998),
34.106: AAS 91 (1999), 31-32.86-87.
[© Copyright 2011 - Libreria
Editrice Vaticana]
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