Continuando com a história dos Papas, o Império Romano do Ocidente não existe mais. As estruturas de poder por todo o mundo ocidental estão mudando. Com as pessoas morrendo de medo e bárbaros pipocando por todos os lados, aos vilões (vilão é quem nasce em vila) só restava grudar nos senhores das fortificações e rezar, rezar muito.
A partir do século VI, coube à Igreja preservar a memória do mundo helênico
e iniciar a construção de um novo mundo: esse em que nós ocidentais
vivemos, e que sempre que podemos cuspimos nele e em suas tradições.
Ei-los então:
São Símaco – Viveu
com sombra do cisma sobre si. Nascido na Sardenha, foi eleito logo
após a morte de Anastácio II. Incomodou-se com o disse-me-disse da
sucessão que se deu ainda com Anastácio II vivo, e proibiu qualquer
mexerico sobre quem seria o sucessor durante a vida do Pontífice. Por
outro lado, permitiu que o próprio Papa pudesse indicar seu sucessor (o
que não quer dizer que seria acatado).
Teodorico, O Rei dos Ostrogodos, comandava o que restou da Itália.
Era um tremendo encrenqueiro e adorava meter o bedelho onde não era
chamado. Convocou São Símaco para se explicar com ele em Ravenna, a
respeito de uma acusação de celebrar a Páscoa segundo a tradição
romana. No caminho, foi alertado de que estava caindo numa armadilha e
que o antipapa Lourenço estava armando pelas suas costas: Teodorico,
engraçado que só, mandou um administrador visitante para ocupar o lugar
do Papa enquanto este estivesse em Ravenna, e este acabou por aderir à
causa do antipapa. Um nó górdio não acham?
Acusaram São Símaco de lascívia e simonia, sem provas.
Se vocês procurarem um site protestante que fale de “papas safados” o
pobre Símaco estará lá com certeza (esse é o nível dessa gente: acusar e
condenar mesmo sem provas). Enquanto isso, o ostrogodão convocou um
sínodo e quis dar uma de gostosão pra cima do Papa. Embuído do que só
pode ser a graça do Espírito Santo, Símaco foi sábio e inteligente ao
assumir para si a convocação desse sínodo.
Assim, o que deveria ser uma das maiores derrotas da Igreja para o poder temporal, tornou-se uma das suas maiores vitórias: Símaco enquadrou nada mais nada menos do que o Rei dos Ostrogodos!
A partir desse sínodo decidiu-se que somente Deus pode julgar o Papa.
Sem poder fazer nada, Teodorico enfiou a viola no saco e foi cantar em
outra freguesia. Na verdade, só pra bater pezinho, 0fereceu a
administração das igrejas de Ravenna ao antipapa Lourenço.
Símaco faz parte da mesma cepa de homens de Deus que legou ao mundo o
Papa Leão I. Partiu para a casa do Senhor antes de realizar seu grande
projeto de reaproximação entre Ocidente e Oriente, quando fora convocado
pelo Imperador para presidir o Concílio de Heracléia. Talvez as coisas
hoje seriam diferentes caso São Símaco tivesse realizado o seu intento.
Papa de 498 a 514.
São Hormisdas – Foi
durante o seu papado que surgiu a ordem dos beneditinos. São Hormisdas
era um homem dedicado à paz, uma espécie de “bombeiro espiritual”; seu
papado foi uma sucessão dificultosa de extinção de incêndios. Era muito diplomático,
alguns de seus detratores diriam que era até demais. Aceitou o convite
feito a São Símaco pelo Imperador, mas não sem antes pedir permissão ao
Rei Teodorico, extinguiu o cisma acaciano (484 a 519) e em duas
ocasiões enviou a Constantinopla as condições para que houvesse reunião.
Pra constar: são Hormisdas fora casado antes de se ordenar. E teve
um filho. Quer mais? Esse filho também foi Papa, aliás um Papa bem
peculiar. São Hormisdas criou a chamada fórmula Hormidas, inconporada
pelo Concílio do Vaticano I (1869 – 1870) à constituição dogmática da
Igreja. Antes de sua morte, recebeu uma boa notícia. Com a morte do Rei
Vândalo do Norte da África Thrasamundo, arrefeceu a perseguição aos
Cristãos naquela parte do mundo. Papa de 514 a 523.
São João I -
Como sofreu e foi humilhado esse pobre Papa! Sua história remonta a um
tempo em que Maomé ainda não estava aprontando das suas, e mostra um
homem em plena consciência do Cristo. São João I sofreu pressão do Teodorico (ele de novo) desde o momento que calçou as sandálias do pescador.
Teodorico era metido e não aceitava não como resposta nem do
representante de Deus na Terra… Pra falar a verdade, acho que ele não
aceitaria um não nem do próprio Senhor do Universo, já que Teodorico
achava que era ELE o Senhor do Universo – uma espécie de Chuck Norris do
Século VI.
Falei de Maomé porque São João I foi o primeiro Papa a viajar para o Oriente e pedir tolerância das autoridades para com os árabes.
Acontece que o propósito da viagem era ir a Constantinopla para pedir
ao Imperador que aliviasse a barra contra os arianos, porque estava
havendo uma forte repressão a esse tipo de heresia. Detalhe: Teodorico
era ariano. São João logrou seu intento, depois de muito bate-boca com o
imperador e o patriarca, conseguiu deles o alívio das leis
anti-arianas. Teodorico, que estava se tornando um velho gagá e
intolerante, levou o Papa para Ravenna e o submeteu a tortura
psicológica. Foi demais para o velho João I, que teve um ataque
cardíaco e faleceu. Papa de 523 a 526.
São Félix IV – Foi
durante seu papado que Cesário, bispo de Arles, combateu o
semipelagianismo, que dizia que a graça era necessária à salvação (o
semipelagianismo é um pai indireto do protestantismo calvinista). Um aparte:
um dos grandes crimes do qual o verdadeiro cristianismo é acusado, e um
dos quais ele é menos culpado, com certeza, é a perseguição aos
hereges. Observem que essas heresias que venho vagamente citando “TODAS
ELAS EXISTEM, TRANSFIGURADAS OU MAQUIADAS, ATÉ OS DIAS DE HOJE” .
São Félix foi designado para o trono de Pedro pelo Ostrogodão
Teodorico, que achava que riria por último. Mas São Félix amou a Igreja
e Deus acima de tudo, o que deixou Chuck Norris, err…, Teodorico
furioso. Félix IV foi repudiado e desterrado por Teodorico.
Em seu leito de morte, esse Papa reuniu seus partidários clericais e
solicitou que sua sucessão fosse dada ao arcebispo Bonifácio, publicou
seu desejo em Roma e mandou carta à Ravenna; mas o senado repudiou suas
intenções e proibiu a discussão papal até que o Papa tivesse partido
desse mundo para encontrar o Criador. Este fato gerou após seu
falecimento um pequeno cisma a partir da eleição do antipapa Dióscuro,
que faleceu apenas 28 dias depois da sua eleição, voltando Roma à
normalidade. Papa Felix IV ocupou o trono de São Pedro de 526 a 530.
São Bonifácio II -
Começou seu pontificado pondo ordem no galinheiro. Todo mundo que
havia votado em Dióscuro como antipapa foi obrigado a assinar uma
confissão de culpa: prometiam não mais agir dessa forma e condenavam a
memória de Dióscuro. São Bonifácio II foi o primeiro Papa de origem
germânica (alemão). Pouco antes de sua morte, tentou fazer seu sucessor,
Vigílio, obrigando seus padres a prestar juramento. Como isso pegou
muito mal, em um sínodo posterior retirou a nomeação. Papa de 530 a
532.
São João II
– Foi o primeiro papa a trocar de nome ao ser eleito – o que depois
virou uma regra geral. A explicação para isso é que o seu nome de
batismo, Mercúrio (Deus pagão de origem grega), não era legal para um
Papa.
São João II foi um Papa de consenso, pois tinha boas relações com o
ostrogodão, Alarico, e com o Imperador Bizantino. Em 523 o Papa aceitou
o decreto dogmático do Imperador que reconhecia os quatro primeiros
grandes concílios ecumênicos e incluía a fórmula teopasquita. Papa de
533 a 535.
São Agapito I - São Agapito é o fundador oficial da Biblioteca do Vaticano de autores eclesiásticos. Ele foi um ferrenho opositor à indicação por parte do Papa de um sucessor:
isso para ele era usurpação das prerrogativas do Espírito Santo.
Faleceu durante uma viagem para Constantinopla e seu corpo foi colocado
num caixão de chumbo e retornado para Roma. Papa de 532 a 536.
São Silvério – O
Ostrogodão Teodato foi o principal arquiteto da eleição de São Silvério
para o trono de Pedro. Lembrando: São Hormidas fora pai antes de se
ordenar e tivera um filho que chegou a ser Papa; esse não era outro que
não São Silvério. Teodato era neto de Teodorico, o ostrogodão chato que
foi amigo de São Hormidas, então la famiglia (ops, ato falho
de mafioso, quer dizer, de historiador) tinha boas relações com D.
Teodato Corleone. Outra peculiaridade a respeito de São Silvério é que
ele foi um dos três papas que renunciaram ao Trono.
A história de sua renúncia daria uma peça de literatura que
deixaria “As crônicas de Gelo e Fogo” no chinelo. Vejam, como eu
disse, São Agapito estava em Constantinopla quando faleceu, lá estavam
seus principais partidários, óbvio. Entre eles Silvério e o sempre
puxa-saco Vigílio, que desde os tempos de São Bonifácio II queria ser
Papa (lembram-se da questão da sucessão que foi tolhida pelo senado
romano?). Além de ser bem relacionado, São Silvério herdou de São
Hormisdas a bondade no coração, a temperança e a simpatia. Era um homem
muito querido. Já Vigílio era um protótipo de Alexandre VI (nosso muy amado Papa
Bórgia), e tinha o apoio da imperatriz Teodora, que era uma espécie de
Teodorico Oriental e de saias. Seu marido Justiniano fazia o que ela
queria, era um panda (o homem em que a mulher manda). Mas enquanto
Teodato estivesse vivo São Silvério e Roma estariam bem na fita.
Acontece que Teodato morreu em 536 e o General de Justiniano,
Basílio, aproveitou o caos da sucessão e mandou suas tropas para a
Itália. Vigílio abriu a porta de Roma para ele. São Silvério se viu
sozinho, isolado pelas tramóias de Vigílio. Despojado de seu pálio,
Silvério foi exilado para a Lícia. Com a ajuda do Bispo de Patara
conseguiu junto ao Imperador uma chance de defesa. Acontece que Vigílio
jogava muito, muito sujo e Justiniano jogava mais sujo ainda. Ao
chegar em Roma Vigílio já havia sido eleito Papa e tratou de jogar o bom
Silvério numa ilhota no fim do mundo (Palmaria, no arquipélago de
Gaeta, já ouviram falar? Lugar bonito). Papa de 536 a 537.
Vigílio -
o Imperador Justiniano é um queridinho da historiografia, mas na
realidade era um chato e um panda, um sujeito que fazia o que a sua
jararaca de estimação queria. Foi a este indivíduo que se associou um dos Papas mais corruptos da História:
Vigílio. Seu pontificado teve um fato mais relevante do que todos os
outros: a dita “questão dos três capítulos” de interesse do Imperadores
do Oriente, a qual ele usou politicamente para conseguir o que queria
sem nunca realmente se decidir.
No final, foi confinado em prisão domiciliar pelo Grande Panda.
Liberado, poderia voltar a Roma, mas o nosso amigo mordeu a língua e,
ops, sofria de cálculo biliar e faleceu gritando horrores durante uma
crise em Siracusa. Papa de 537 a 555.
São Pelágio I
– Era um respeitado Núncio Apostólico em Constantinopla. Indicado pelo
Imperador Justiniano para suceder o chato do Vigílio, foi mandado a
Roma para calçar as sandálias. Vejam só, Pelágio era um bom homem e
seria um bom papa; mas, depois de aturar o miserável títere da
Imperatriz por 18 anos, ninguém em Roma tinha mais saco para aturar
outro Vigílio, e por isso Pelágio foi recebido com 20 pés atrás. Demorou
meses depois de sua chegada para que o clero o confirmasse como Papa,
por pura desconfiança.
Vencida a desconfiança original, dedicou-se a resgatar a Lei e a Ordem em Roma. Buscou aliviar a pobreza e a fome, além de resgatar prisioneiros naqueles tempos de anarquia. Foi um grande economista também: organizou as finanças de Igreja,
dedicando grande parte da renda aos mais necessitados, e arrumou
grandes inimigos ao combater a simonia e a corrupção clerical em todas
as suas formas.
Pelágio foi um herói de fato, mas era já idoso e seu pontificado durou apenas cinco anos. Papa de 556 a 561.
João III -
Durante seu pontificado nasceu Maomé. Sabemos pouco de seu reinado,
porque Roma nesta época estava sendo invadida pelos Lombardos. Vejam
neste curto espaço de tempo, Roma esteve sobre os Ostrogodos, virou,
humilhação das humilhações, colônia de Constantinopla e agora tinha que
aturar os Lombardos e as suas lombardices (eles destruíram a cidade).
Roma é chamada de cidade eterna não porque vá durar para sempre, mas
porque, após ser destruída, sempre se ergue. João III teve que se
mandar e instalou sua Sé em São Tibúrcio a três quilômetros de Roma.
Foi o segundo Papa a trocar de nome, originalmente chamava-se Catelino.
Papa de 561 a 574.
Bento I – Foram
onze meses sem papa graças à bagunça promovida pelos Lombardos. Foram
tempos negros. Os Lombardos acabaram com Roma e o Imperador Justiniano
II não tava nem aí. O cerco à cidade eterna estava provocando fome e
desolação. Foi durante esse tempo que faleceu Bento I, um homem
corajoso, mas frágil, que fez o que podia. Papa de 575 a 579.
São Pelágio II – E
tava tudo pegando fogo, que beleza! Durante o caos, para evitar os
problemas que ocorreram antes da eleição de Bento I, o clero tratou de
eleger rapidinho seu sucessor, e a responsabilidade recaiu sobre São
Pelágio II. Esse também era muito macho. Como o Imperador não dava
mais a mínima por Roma, o Papa também não deu a mínima para o Imperador e
assumiu o trono sem esperar a sanção imperial.
Mas Pelágio II era também sensato, e aqui ele coloca na cena
histórica um grande personagem da humanidade como um todo: São Gregório
Magno, que era seu diácono. São Gregório foi enviado à Constantinopla
para pedir ajuda ao Imperador, que estava a míngua. Depois disso, o
Papa pediu ajuda aos francos merovíngios, que deviam estar dormindo (por
isso eram chamados de Reis Preguiçosos). Foi o vice-rei de Ravenna
que conseguiu uma trégua de quatro anos com os invasores. Foi durante
seu pontificado que os visigodos espanhóis se converteram ao
catolicismo. Papa de 579 a 590.
*****
O último papa do Século VI merece um post a parte assim como o Papa
Leão I. Então nosso próximo encontro será para ver um pouco mais da
vida de um papa excepcional: São Gregório I, Magno. Vejam, Magno não é um nome dado a qualquer um!
Por Paulo Ricardo em 06/11/2011
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