Por Dom Emanuele Bargellni, Prior do Mosteiro da Trasnfiguração
SÃO
PAULO, quinta-feira, 10 de novembro de 2011 (ZENIT.org)
– Apresentamos o comentário à Liturgia da Palavra do 33º domingo do Tempo Comum
– Pr 31, 10-13; 19-20; 30-31 – 1 Ts 5, 1-6; Mt 25, 14-30–, redigido por Dom
Emanuele Bargellini, Prior do Mosteiro da Transfiguração (Mogi das Cruzes - São
Paulo). Doutor em liturgia pelo Pontificio Ateneu Santo Anselmo (Roma),
Dom Emanuele é monge beneditino camaldolense.
33º DOMINGO DO TEMPO COMUM - A
Servo bom e fiel... vem participar da minha alegria
Leituras: Pr 31, 10-13; 19-20; 30-31 – 1 Ts 5, 1-6; Mt 25,
14-30
Que
alegria ouvir este apaixonado convite na boca do patrão elogiando seu empregado
pela obra bem cumprida; ficando feliz de partilhar com ele sua própria
felicidade! Se além disto, - isto é, o patrão que se alegra pela engenhosa
criatividade do seu servidor - for o próprio Senhor, que trata o servidor como
seu amigo, introduzindo-o na sua intimidade, o estupor desta festa é ainda mais
encantador!
É
justamente isso, o que Jesus pretende nos revelar, através da parábola, sobre a
relação do Pai com cada um de nós. Uma relação de confiança, com a qual o Pai
desafia a liberdade, a criatividade e a responsabilidade do homem na construção
do seu reino, e o convida a tornar-se seu colaborador.
A
parábola do patrão, que entrega a seus empregados uma relevante soma de
dinheiro para que eles a trabalhem durante sua ausência, faz parte da perspectiva
escatológica que caracteriza todo o capítulo 25 do evangelho de Mateus. Sobre a
vinda gloriosa do Senhor, ninguém conhece o tempo e a modalidade ao não ser o
próprio Pai (Mt 24,36.42-44).
Esta
incógnita deve gerar nos discípulos vigilância e anseio do encontro, como
acontece com as moças que esperam em meio à noite o noivo, enquanto este se
atrasa para chegar e celebrar a festa das bodas (Mt 25, 1-13). Deve suscitar
confiança e operosidade e não medo, como nos empregados sábios que administram
os talentos recebidos (Mt 25, 14-30). Deve alimentar aquela lucidez de visão
que faz reconhecer o Senhor já presente nas situações da vida, especialmente
nos mais necessitados. O Senhor julgará somente a partir da criatividade
fecunda do amor, não pela quantidade das obras cumpridas (Mt 25, 31-46).
Com
a parábola de hoje, Jesus nos surpreende mais uma vez. O Pai, nos diz Jesus, se
relaciona com o homem, apontando antes de tudo sobre suas capacidades
positivas. Com o intuito de despertar suas potencialidades e responsabilidade,
o liberta de todo medo que paralisa as energias vitais, e de toda presunção que
faz o homem descuidar de suas responsabilidades diante de Deus. Deus, ao
contrário, transforma o empregado num colaborador responsável e criativo, e
ainda mais, num amigo com quem partilhar a sua mesma alegria da vida.
Que
diferença com certas imagens de Deus, recorrentes em certa pregação, que, com o
intento de recuperar o enfraquecido sentido do pecado, chega a apresentar-lhe o
rosto deformado de um fiscal, interessado mais ao código das normas que à
pessoa!
A
parábola destaca logo três elementos salientes na pedagogia de Deus.
1- “Chamou
seus empregados e lhes entregou seus bens... a cada qual de acordo
com sua capacidade” (Mt 25,15).
Os
executivos das empresas, ao entregar uma tarefa aos empregados, determinam
antes de tudo o objetivo da iniciativa. Pretendem de todos, sem distinção, o
máximo esforço para alcançá-lo. O alcance do objetivo é o único critério para
avaliar o comportamento de todo empregado.
O
Pai de Jesus, ao contrário, na imagem do patrão da parábola, entrega seus bens
“a cada um de acordo com sua capacidade”, e, ao acertar as contas,
julga o resultado, não em base da quantidade do capital ganho, mas em proporção
ao empenho que, com responsabilidade e criatividade, cada um desenvolveu. Ele
está interessado antes de tudo ao bem estar, à realização das potencialidades
da pessoa, mais que à renda do capital entregue. Ele está interessado em poder
partilhar sua felicidade com o empregado/amigo!
A
retribuição que Deus dá é sempre total, contra a lógica de uma visão mercantil
e moralizante da vida e da religião. A parábola dos trabalhadores
desempregados, chamados a trabalhar na vinha do patrão a qualquer hora do dia,
com a distribuição do inteiro salário mesmo para aqueles que tinham chegado ao
cair do sol, já orientava nesta direção desconcertante, isto é, do estilo do
Pai que recompensa dando, não o que achamos ter merecido, mas a si mesmo e
gratuitamente. “Toma o que é teu e vai. Eu quero dar a este último o mesmo
que a ti.... Ou estás com ciúme porque sou bom? (Mt 20, 1- 16).
2-
“Chamou seus empregados e lhes deu seus bens..... Em seguida viajou”
(Mt 25, 15).
O patrão, depois de entregar a cada um os talentos de acordo com
sua capacidade, escolhe viajar. Afasta-se deliberadamente. Deixa aos empregados
plena liberdade de atuação. Manifesta plena confiança em cada um, e de cada um
solicita a expressão das próprias capacidades. Corre o risco de perder. Não
exige mais, não renuncia ao possível. Chama cada um a ser seu colaborador na
vida e na construção do seu reino. O Senhor é amante da vida e promove as
pessoas.
Deparamos-nos
com o mistério da liberdade do homem, solicitada e promovida por Deus.
Significativa esta imagem do patrão que, depois de entregar aos empregados seus
bens, vai viajar. Se afasta, por assim dizer, para cada um estar
certo que Deus não limita sua liberdade, criatividade e responsabilidade na
construção da sua história.
Como
afirma Paulo na carta aos Filipenses, Deus se faz pequenino, e se retrai na
pequenez do Verbo que se despoja de toda glória divina, se esvazia, e partilha
nossa pequenez, para o homem partilhar a vida verdadeira em plenitude. “Oh
admirável intercâmbio! Deus se fez homem para que o homem participe da natureza
de Deus”, cantamos com estupefata alegria ao celebrar o mistério da
encarnação na solenidade do Natal.
3-
Cada um dos empregados reage à sua maneira.
Nisto cada um manifesta quem
ele é de verdade, e qual a qualidade da relação vivenciada para com o patrão.
Os dois primeiros empregados manifestam auto-estima, iniciativa, abertura aos
riscos e prudência, liberdade e responsabilidade. O terceiro tem uma baixa
auto-estima, dá una leitura prejudicialmente negativa das atitudes do patrão,
vive a relação com ele sob o pesadelo do medo, e acaba simplesmente escondendo
no chão o precioso talento: “Senhor, sei que és um homem severo, pois
colhes onde não plantaste e colhes onde não semeaste. Por isso fiquei com medo
e escondi o teu talento no chão. Aqui tens o que te pertence” (Mt 25,
25).
Ele
reduz Deus às medidas da sua mesquinhez de ânimo. O medo paralisa suas
capacidades, o torna irresponsável diante do patrão e do talento, enquanto ele
julga que seu dever e sua habilidade hão de limitar-se a “guardar intacto” o
talento recebido. Pelo contrário esta atitude é definida pelo patrão como uma
radical infidelidade à tarefa recebida, que era a de trabalhar o talento e não
somente de guardá-lo.
Às
vezes o mesmo mecanismo paralisante se insinua na vida pessoal e até na vida
das comunidades, no que diz respeito ao tesouro vivente que nos foi
“entregue-confiado” (em latim: entregar = tradere, traditio[tradição]),
através da pregação do evangelho e da tradição viva da Igreja. A Tradição da
Igreja, a dos elementos essenciais da fé e da vida espiritual da Igreja, é um
tesouro vivente e dinâmico, como é a Palavra de Deus que a gerou e que fica
gerando-a. É preciso trabalhá-la para que ela possa produzir seus frutos de
vida no Espírito. Guiada pela Divina Providência, ela cresce ao longo da história,
sob o impulso do mesmo Espírito e através dos vários ministérios e experiências
da comunidade cristã.
Uma
luz muito iluminadora sobre este assunto tão vital foi oferecida ao povo
cristão do nosso tempo, pelo Concílio Vaticano II na Constituição Dei
Verbum (ver em maneira especial o n. 8), e mais recentemente pela
Exortação apostólica do Papa Bento XVI, “Verbum Domini” (2010).
Às
vezes, na presunção de guardar em maneira mais fiel algumas práticas religiosas
ou certas maneira de pensar a vida cristã, que alguém julga como “tradição”
importante, acaba congelando o tesouro da fé e da vida recebida, sob uma
determinada forma histórica ou cultural. O tesouro fica escondido no chão,
impedido de frutificar. O Senhor vai nos pedir conta desta administração do seu
tesouro, talvez generosa, mas desprovida do devido discernimento do Espírito.
A
cultura da modernidade parece ter desenvolvido, no que diz relação à
responsabilidade do homem na história, uma atitude que vai num sentido
contrário. Destacou a responsabilidade do homem até a radical autonomia na
construção do mundo, considerando Deus um impedimento à real dignidade do
homem. “Viver como se Deus não existisse”, foi um marco
fundamental da modernidade.
A
tradição bíblica, porém, considera o homem/mulher colaborador de Deus na sábia
gestão da criação. O trabalho do homem corresponde à sua divina vocação de
“guardar e cultivar” o mundo e promover a vida na história (cf Gn 2, 8-15).
Paulo, na carta aos Tessalonicenses, destaca esta tarefa, como preparação responsável
à vinda gloriosa do Senhor (Ts 5, 1-6).
Esta
tensão entre compromisso na história do hoje e a espera da vinda gloriosa do
Senhor, faz dos cristãos homens e mulheres de espírito critico, sábios,
vigilantes e livres. A repetida imagem bíblica do ladrão que surpreende na
noite, e das dores do parto que podem sobrevir de repente (1 Ts 5,2-3), não
devem nos desnortear. Jesus e Paulo pretendem destacar o fato que o evento
escatológico do reino de Deus não depende dos poderes humanos, mas da livre e benevolente
vontade do Pai. Isto há de gerar não medo, mas vigilância confiante.
A
imagem da mulher operosa e criativa, reforça esta perspectiva (primeira
leitura).
Às
vezes também entre as pessoas “religiosas”, se encontra a atitude “mundana” de
acreditar que o homem e não Deus é o principal protagonista da santidade
pessoal, assim como da eficácia da evangelização e do ministério apostólico nas
suas variadas formas. O papa Bento XVI, durante sua recente visita apostólica
na Alemanha, chamou a atenção sobre a exigência de despojar-se de certas formas
finas de mundanização que poluem a Igreja no espírito.
Jesus
nos diz que Deus chama o homem a tornar-se seu colaborador, na liberdade e na
criatividade. Seu próprio projeto de vida se torna também obra do homem, a
exercer na liberdade do amor, liberta de todo medo: “Vós não recebestes um
espírito de escravos, para recair no temor, mas recebestes um espírito de
filhos adotivos, pelo qual clamamos: Abba-Pai” (Rm 8,15).
A
recompensa que o empregado/amigo/filho recebe, é o próprio Deus: “Como
foste fiel na administração de tão pouco, eu te confiarei muito mais. Vem
participar da minha alegria” (Mt 25,21.23).
O
empregado medroso, ao contrário, tem uma imagem totalmente deformada do
patrão/Deus, como de um “algoz”; e de si mesmo como de um escravo. Junto com o
talento, enterrou a si mesmo. Está já morto. Por isso, como se poderia ainda
deixar o talento precioso nas suas mãos? Ou, como ele poderia partilhar a
alegria do seu patrão? Por si mesmo, ele se jogou fora da vida. A dura sentença
do patrão que o expulsa do circuito da festa, mais que uma severa punição por
parte do patrão, parece a ratificação da triste sorte já construída pelo
próprio empregado medroso e irresponsável.
A
Oração Eucarística IV, hoje pode interpretar bem as perspectivas abertas pelas
leituras bíblicas, e dar-lhes a profundidade da oração que tudo consegue
unificar em Cristo e no seu mistério de morte e ressurreição, transformando o
dom da palavra recebida em ação de graças ao Pai, por Cristo Jesus, no Espírito
Santo.
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